terça-feira, 8 de março de 2011

ENSINO RELIGIOSO E EDUCAÇÃO: histórico, contexto, contradições e interesses

 

Antonio Nascimento da Silva[1]

 

Introdução

A exposição ora apresentada constitui-se de um recorte do terceiro capítulo da pesquisa que resultou na monografia “A influência do ensino religioso na formação da conduta do homem inteiro” de autoria do primeiro autor, orientado pelo segundo. Conscientes da importância de aclarar a realidade educacional, em meios a diversos entraves que impedem a educação pública de atender realmente aos anseios dos que a utilizam, observamos ser importante uma investigação rigorosa sobre o aspecto religioso dentro do espaço institucional da educação mantida pelo Estado, bem como todas as relações que o permeiam. Posicionados nessa reflexão e assumindo o compromisso de uma aproximação o quanto maior da realidade, optamos pelo método marxiano-lukasiano, que busca compreender o objeto dentro de todo seu contexto e, que toma como base para formação das categorias abstratas, o que a própria natureza sugerir. De outra forma, nosso método parte do todo para o específico, e deste para aquele, portanto dialético não-mecanicista. Para efetivarmos o trabalho, buscaremos inicialmente atingir um conceito geral, ainda que provisório, de religião, procurando mostrá-lo na teoria e no cotidiano. Em seguida, procuraremos sublinhar a categoria educação, expondo sinteticamente sua evolução ao longo da história. Na sequência, mostraremos a histórica e peculiar relação entre o Estado e a educação, destacando o cenário atual, onde como sugere o entendimento de Mészáros (2005), a sociedade está sob uma crise estrutural do capital. Destacaremos os moldes contemporâneos daquela relação e, por fim, em caráter de parcial conclusão, traçamos as principais características do ensino religioso dentro da atual educação pública oferecida pelo Estado brasileiro que concentra diversos caracteres de capitalismo tardio. Nossas considerações conclusivas apontaram para um ensino de religião que se opõe a proposta teórica da escola. Essa disciplina, ao apoiar-se na teologia cristã, suprime a história, tornando-se dessa forma, não-crítica e, portanto, contribuindo com a atual forma de sociabilidade burguesa, opondo-se a emancipação plena da sociedade.

Sendo a religião uma estrutura que deixa suas marcas em qualquer sociedade, entendemos ser importante analisar o ensino religioso pelo fato deste se constituir como ponto de contato entre a religião e a formação institucional promovida atualmente por um determinado tipo de Estado. A educação institucional, em meio a diversos fatores sociais, sofre constantemente influência do meio a qual está incerida, por vezes positivas, ora negativas. Partiremos desse ponto para lançar luz sobre a relação: educação-religião. Para isso, será necessário distinguirmos exatamente de que religião estamos tratando. Sendo assim, devemos proceder a uma definição da religião, de acordo com, primeiro: modelos teóricos respeitados e, em seguida, com base nas observações e reflexões sobre a instituição religiosa contemporânea. Esse mesmo caminho de investigação será seguido para a proximação da educação. Assim, poderemos fazer inferências seguras a partir da evolução das duas categorias.

Aproximações sintéticas ao estudo categórico da religião

Inicialmente, recorremos a Portelli (1984) que apresenta três definições básicas de religião m base em Gramsci. As três argumentações produzem – se analisadas a fundo – implicações em diversas esferas sociais. Contudo, para efeito desta comunicação, importa-nos apenas a caracterização da instituição religiosa.

Portelli (1984) distingue, no marxista italiano, a definição leiga, a religiosa e a que o próprio autor chama de “definição Gramsciana da religião”. De início exporemos a primeira da série, pelo motivo desta ser mais ampla que as demais e por preponderar – pelo que demonstra Gramsci – justamente no cotidiano imediato dos homens. Assim, ao citar Gramsci, Portelli diz que

é religião toda filosofia – ou seja, toda concepção do mundo – enquanto se tornou “fé”, isto é, enquanto é considerada não como atividade teórica (de criação de um novo pensamento), mas sim como estímulo à ação (atividade ética-política concreta, de criação de nova história) (1984, p. 23).

A citação é clara. Dessa forma são evidentes as contradições como, por exemplo, uma filosofia pode sim, ser uma concepção da realidade, mas não necessariamente deve ter uma moral expressa mitologicamente. Comprova tal contradição o próprio marxismo, pois como aponta o entusiamo de Sartre (1987), o marxismo é a filosofia insuperável do século XX: o clímax das idéias. Não necessitando, entretanto, tal filosofia, de uma moral exposta de forma mitológica. De modo confessional, segundo Portelli, Gramsci caracteriza a religião em:

1) crença de que existem uma ou mais divindades pessoais que transcendem as condições terrestres temporais; 2) o sentimento dos homens de que dependem destes seres superiores que governam totalmente a vida do cosmo; 3) a existência de um sistema de relações (culto) entre os homens e os deuses (1984, p. 21).

As duas categorizações expostas vão compor em certa medida a definição tida como gramsciana da religião. Portelli demonstra tal conceitualização ao citar o seguinte trecho de Gramsci: “a religião se caracteriza por sua contradição entre o materialismo prático”, ou seja, aquele que Lukács (1982) chama de materialismo espontâneo e o “idealismo teórico, o que a assemelha às doutrinas utópicas e a transforma em período de declínio, em ópio do povo” (1984, p. 27). Entendemos que esse argumento de maneira simples, contém as características universais de toda religião.

De modo mais próximo temos o exemplo cristão católico, onde as atitudes práticas divergem da ideologia teórica da teologia. Os cristãos mais fervorosos desconhecem as determinações teológicas de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Tais determinações por estarem numa esfera idealista pareceriam para o cristão do cotidiano, qualquer coisa, menos a religião que ele segue. Ao homem imerso em sua cotidianidade de forma espontânea, interessa cumprir os rituais da igreja garantindo assim uma vida post mortum. Assim, argumanta Portelli apoiado em Gramsci: o católico que seguir a risca todas as regras do catolicismo vai se parecer com um mostro (PORTELLI, 1984).

Esse distanciamento entre teoria e prática não existe – ou pelo menos é muito tênue a linha divisória – nos períodos primitivos da religião. Nesse momento, determinado ainda por uma postura mágica, o germe religioso era estreitamente ligado ao cotidiano, atendendo a funções práticas essenciais.

Desse modo, a religião situa-se num meio termo entre a filosofia e o folclore, pois ao mesmo tempo em que esta possui um núcleo “filosófico”: a teologia, é permeada também pelo folclore e pelo senso comum. Como toda religião dispõe de um núcleo material prático, a mesma é já por esse motivo, heterogênea e sedimentada, pois não dispõe de uma organização teórica coerente com a realidade prática e que seja universal.

A teologia não consegue dar tal sistematização ao conjunto geral da religião, justamente por que é idealista. E a prova da referida estratificação da religião esta de maneira clara nas diversas igrejas cristãs, e de modo particular no catolicismo, quando observamos um comportamento religioso diferente em cada camada social.

Com relação às igrejas reformadas a situação não é diferente, sendo possível demonstrar o vínculo da instituição religiosa com as forças produtivas. A liberdade espiritual aspirada por Lutero foi, antes de tudo reflexo do contexto histórico da época, onde os mercadores emergiam em oposição aos feudos e clamavam por liberdade para negociar seus produtos.

É interessante observarmos que a crítica de Lutero ao catolicismo é justamente com relação à prática da compra de indulgências. Ademais, a Igreja de Roma esbanjava luxo enquanto a massa permanecia na miséria, conformada com a promessa do além mundo. Destarte, as próprias doutrinas derivadas do luteranismo, se opõem a sua base. É o que assegura Max Weber (2007). Este autor explica que a doutrina da vocação, ao pregar a não aquisição desnecessária de ônus, o não desperdício de dinheiro, a dedicação ao trabalho como glorificação de deus, propicia ao mesmo tempo o acúmulo de riquezas e a avareza (WEBER, 2007). As duas últimas são fundamentais para o capitalismo.

Por outro lado “a doutrina da predestinação é o dogma característico do calvinismo” que prega a completa inferioridade da ação humana (WEBER, 2007, p. 83). Segundo esta doutrina, antes mesmo de o homem existir deus já tinha os seus escolhidos, não importa o que o homem faça, diante de si há um destino pronto e acabado, não podendo o homem interferir na história (WEBER, 2007). Essa concepção favorece uma ordem dominante na medida em que torna os dominados sempre mais passivos e conformados.

Dessa maneira, a reforma protestante marca a gênese de uma nova ordem produtiva e a respectiva adequação da religião a esta ordem. A história tem mostrado de forma bastante clara essa relação, entretanto, cabe a nós a seguinte questão: desconheceria Lutero a amplitude e o significado de “seu” protesto? Até Weber, com seu materialismo filosófico-idealista, pôde mostrar, ainda que superficialmente – sem explicar os motivos concretos –, a estreita relação existente entre o capitalismo e a religião.

Podemos agora, mesmo que em caráter preliminar, dizer que a religião difere do folclore e do senso comum, haja vista que estes não têm necessariamente um deus e um culto para se relacionar com um demiurgo. Entretanto, ela é tão heterogênea como estes outros grupos ideológicos, tendo em seu seio uma parte de cada um ao passo que também contribui com o conteúdo destes, além de uma filosofia específica: a teologia. Sua teoria, por ser transcendente e antropomórfica, deve conter um conjunto de dogmas, e opor-se diretamente a ação prática cotidiana. Sendo a religião uma superestrutura – como demonstrada por Gramsci na esteira de Marx –, esta permanece sempre sujeita ao modelo produtivo, servindo como instrumento ideológico do bloco dominante, sempre intelectualmente atrasada com relação a este e, tendo as condições econômicas como fator preponderante na sua constituição.

Trabalho e educação como elementos de desenvolvimento humano

Uma vez que expusemos a pedra de toque da religião para as nossas futuras reflexões, procurando extrair da realidade histórica e concreta, as categorias teóricas, procuraremos a partir de agora, realizar semelhante trabalho tendo como foco a educação.

Os conhecimentos práticos do cotidiano primitivo, ao passo que se avolumavam, também se disseminavam entre as tribos. Oralmente as técnicas de caça, as formas de evocação, de culto, a melhor maneira de se abrigar das intempéries da natureza e enfim, todo o conhecimento que dispunha o ser primitivo era paulatinamente assimilado seja pelos adultos ou pelas crianças. É inegável, portanto, que existisse no seio dessa sociedade, assim como hoje, um conjunto de conhecimentos de caráter prático e também idealista.

Tais conhecimentos, naquelas circunstâncias, tinham o único objetivo – ainda que pareça implícito – de formar a criança para a vida, o que incluía aspectos mágicos animistas. Tal ação formadora, contudo, não se distanciava da realidade, pois inclusive os citados aspectos ideológicos tinham, em última instância, maior imediaticidade se comparados com os atuais.

Podemos considerar assim que, partindo do que Lukács (1982) chama de salto ontológico do homem, todo o conhecimento produzido por este – pelo menos a priori – foi transmitido, assimilado por outros homens ao longo da história. Aníbal Ponce (1998) mostrou isso de forma bastante e clara.

De acordo com as considerações de Ponce, apesar de sempre ter existido essa troca de conhecimento entre o homem; ela teve, entretanto, variações fundamentais até chegar ao estágio atual, pois o modo de se aprender na sociedade primitiva difere do modelo escravista, bem como do sistema feudal e do capitalismo. Com o surgimento das classes e a respectiva divisão social do trabalho, ficou evidente a necessidade de uma educação diferenciada para aquela classe que exerce o domínio sobre outra dominada. Isto se deve, entre outros casos, pelo fato de que as aspirações de ambos os estratos sociais são diferentes (PONCE, 1998).

Aristóteles desconhecia esse caráter contraditório no seio de sua própria sociedade escravocrata, pois segundo o mesmo “o senhor e o escravo tem o mesmo interesse” (2001, p. 54). Contudo, é importante destacar que para esse filósofo a educação deveria ser concebida a todos, sendo garantida pelo Estado. Ressaltamos, entretanto, que para Aristóteles o “todos” limita-se aos cidadãos, ou seja, aos que tinham direitos políticos em virtude de suas posses materiais: os senhores (ARISTÓTELES, 2001).

Está claro, portanto, a princípio, que o fenômeno educativo enquanto troca de experiências e conhecimentos acumulados sempre ocorreu, sendo que a partir da divisão de classes, a transmissão de conhecimentos era diferenciada para cada classe. Daí temos duas divisões básicas da educação. Corresponde a primeira dessas, toda situação que proporcione uma troca de conhecimento de maneira não-formal, no cotidiano do ser. Através dessa educação, os homens tomam parte principalmente do conteúdo moral – incluindo-se as relações interpessoais diversas. Assim, o conhecimento adquirido fora do ambiente escolar, de modo geral, é assistemático.

Por outro lado, a educação institucionalizada deve, ao menos em tese, ser responsável pela transmissão dos conhecimentos científicos: sistematizados produzidos pela humanidade, além de proporcionar as condições para a ampliação desses. Entretanto, em virtude da primeira – e mais importante – divisão da educação que expomos, aquela com relação às classes, uma parcela da população, apesar de estar na escola, é privada entre outros, do conhecimento científico, político e artístico.

De acordo com essas considerações, podemos agora, desconsiderando por enquanto várias outras mediações importantes, dizer que educação enquanto ato, diz respeito, generalizadamente, a toda situação onde ocorra a troca de conhecimento, seja estes científicos ou não, com ou sem uma finalidade clara e objetiva. Realizando-se institucionalmente ou não.

A relação entre Estado e educação

Atualmente, nos países que partilham da periferia do capitalismo desenvolvido, de modo particular no Brasil, é responsabilidade do Estado promover a educação institucionalizada – tal como figura na Constituinte Federal de 1988 –, com tudo o que lhe é anexo, muito embora, venha ocorrendo desde o final da década de 1970 uma tentativa de desobrigação do Estado com relação à institucionalização do processo educativo, buscando diminuir ônus para com a manutenção das instituições educativas e ao mesmo tempo, proteger a iniciativa privada. Para entendermos essas relações, teremos inicialmente como noção de Estado o trecho de Sofia Leche Vieira e Maria Glaucia Albuquerque ao citarem Koogan Houaiss, onde afirmam que Estado refere-se a um “povo social, política e juridicamente organizado, que, dispondo de uma estrutura administrativa, de um governo próprio, tem soberania sobre um determinado território” (2001, p. 20).

Interessa-nos, todavia, duas noções básicas referente ao Estado, uma de base liberal[3] e outra que seria uma concepção marxista. De modo sintético, para a primeira concepção, o Estado assume uma neutralidade principalmente com relação à economia, tomando para si apenas as questões com relação ao direito além de prover bens como educação e saúde (VIEIRA; ALBUQUERQUE, 2001).

Ressaltamos, no entanto, que atualmente a educação se transformou em um mercado promissor para os especuladores de plantão, uma mercadoria defendida pelo Estado. Este buscará meios para que a educação seja lucrativa para o setor privado. É por isso que, para o modelo capitalista de produção, a universidade pública é encarada como anacrônica e dispendiosa. E mesmo sendo não-privada, “legalmente” o Estado procurará meios o quanto forem possíveis para tornar esta (educação) útil ao capital, mesmo que por dentro da esfera pública. A educação é assim, manipulada a serviço do bloco hegemônico.

Esta relação inicial entre um Estado que regula a educação segundo as necessidades de uma ordem econômica, produz a segmentação do sistema educacional conforme as classes sociais existentes. Assim, é marca social da escola contemporânea o fato de que cada grupo social tem um tipo de escola própria destinada a perpetuar nestes grupos uma determinada função, como fica claro em Mochcovitch (1992), a partir de seu diálogo com Gramsci. Em virtude de tal argumentação, é conveniente demonstrarmos provas históricas dessa relação.

Os primeiros pressupostos da divisão de classes entre os homens é a diferença de gênero e de idade. Essa diferença possibilitou alguns realizarem atividades vitais enquanto outros eram incapacitados para as mesmas. Diante de tal situação, paulatinamente, o trabalho foi se segmentando. Ao homem, a caça; à mulher, a prole ou já nos tempos tribais os cuidados com o abrigo (PONCE, 1998). Contudo, ressaltamos que essa primitiva divisão distancia-se muito da atual. Alertamos também que o exemplo acima não desmente a tese de que, de maneira geral, o elemento preponderante na divisão de classes é o modelo produtivo[4].

Com a divisão mais acentuada, as funções foram se desmembrando cada vez mais. Nas tribos iam surgindo o responsável pelo culto, por resolver os conflitos e outros pontos mais específicos. Todavia, o xamã, dedicado em sua função, dispunha de outros membros da tribo para prover, por meio do trabalho, o necessário para seu sustento. Com isso, tanto o responsável pelo aspecto religioso, quanto aquele do “direito”, beneficiavam-se com o ócio, podendo planejar estratégias que lhes garantissem a continuidade daquele conforto garantido pelo trabalho alheio.

Com isso, tais funções – entre outras – passaram a ser hereditárias. No entanto, para que isso ocorresse, como já afirmamos, aos filhos dos sacerdotes lhes eram ensinado para serem como tal: sacerdotes. E assim se deu com os outros grupos, ou seja, já numa divisão primitiva, não era mais lícito – como no primitivismo coletivo – que todos os membros da tribo assimilassem de forma igualitária, todo o conhecimento anteriormente conseguido por esta. Este fenômeno vai repetir-se em todos os outros modelos produtivos.

A educação atual é, dessa forma – segundo o que expõe Mochcovitch (1992) –, o que Gramsci, em oposição a sua proposta educativa, chamaria de educação interessada, em virtude da intenção em beneficiar uma classe. Entretanto, a intencionalidade unilateral do Estado com relação ao ensino é maquiada pelas políticas públicas para que se torne mais digerível às massas. É o que notamos na Constituição Federal, quando seu Artigo 205 traz o seguinte texto: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (2003, p. 49).

De maneira geral e aparente, tal proposta é positiva, mas ao analisarmos mais detalhadamente percebemos seu caráter intencional. Primeiro notamos a justificação legal do que temos aludido brevemente antes sobre a desobrigação do Estado com relação à educação. Nesse ponto, as ONG’s têm um importante papel, pois, ao passo que é aberto o espaço para a atuação da sociedade civil na educação, essas instituições umentam consideravelmente sua atuação no setor público. Paralelo a isso, o Estado investe no setor privado.

Com relação a formação cidadã que também é proposta pelo capitalismo e expressa na lei, basta termos em conta a reflexão que faz Ivo Tonet, segunda a qual,

a teoria liberal da cidadania (representada por Kant, Hobbes, Lock, Rousseau e outros) tem como ponto de partida o pressuposto de que todos os homens são iguais e livres por natureza. [...] a desigualdade social era considerada legítima e constitutiva do mundo humano porque fruto do exercício da própria liberdade natural (2005, p. 81).

Devemos, a respeito da reflexão de Tonet, lembrar que um dos pressupostos ideológicos do atual sistema é justamente a liberdade financeira individual. Por sua vez, a intencionalidade em promover o preparo para o mercado de trabalho, demonstra uma dupla atuação do Estado. Ao mesmo tempo em que patrocina a escola privada, procura de todas as formas preparar operacionalmente os usuários da pública.

Nas atuais circunstâncias, a capacitação para assumir uma vaga no concorrido mercado de trabalho parece bastante conveniente e, como as necessidades materiais concretas predominam sob todas as outras, é bem mais vantajoso um emprego que estudar filosofia. Contudo, a limitação da escola pública a essa função preparatória instrumental, torna-a imediatista e descompromissada com as inúmeras outras potencialidades do ser humano. Destarte, é com razão que Mochcovitch (1992) ao comentar o pensamento de Gramsci sobre a escola profissionalizante, adianta ser esta, um instrumento de reafirmação e cristalização das diferenças sociais.

Toda essa situação da educação dentro do atual modelo capitalista neoliberal gera diretamente no cotidiano escolar das massas, inúmeros problemas de ordem prática. O professor Frederico Costa, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), enumerou de maneira sintética algumas dessas principais implicações. Segundo ele, a pedagogia do “aprender a aprender”, fruto do regime político e econômico que temos aludido como ideologia, dá à educação, entre outras, as seguintes características:

1) esvaziamento do professor como transmissor de objetivações culturais elaboradas no desenvolvimento histórico da humanidade; 2) enaltecimento do pragmático sobre o teórico; [...] 4) desprezo do aspecto intelectual do processo de aprendizagem em função de uma elevação unilateral do lúdico; [...] 7) extrema valorização do fazer ao lado de certa indiferença pelo saber; [...] 9) exacerbação do particular e quase anulação do universal [...] (COSTA, 2010, p. 166-7).

Assim, considerando a educação como uma superestrutura, bem como o é a religião, podemos parcialmente chegar a seguinte conclusão: sendo toda superestrutura efetivada preponderantemente por uma base material, o sistema capitalista (base produtiva) enquanto desumano e estruturalmente em crise, baseado na exploração do homem pelo homem, vai dessa forma, organizar um modelo educativo que legítime tal situação. A educação é, portanto, elitista, pois na prática não consegue garantir o mínimo, como a igualdade de acesso e permanência para todos, por exemplo. O que entre em contradição frontal com o artigo 206, inciso I, da Constituição Federal. Dessa forma, o Estado joga a favor da classe dominante ao garantir legalmente que através da educação sejam reproduzidas as relações de domínio.

Hoje, é ensinado ao filho do trabalhador simplesmente uma profissão, enquanto que uma elite tem acesso ao ensino de filosofia, de artes e de cultura geral, além de aprender o básico, que é a função de domínio e exploração da força de trabalho alheia[5]. Cabe ao filho do pobre o trabalho braçal alienado e alienante, ao passo que ao filho do capitalista, que dispõe de tempo ocioso, está reservado as funções gerenciais e de controle. Aproveitamos a oportunidade para marcar energicamente que nem a primeira proposta tampouco a segunda servem de modelo educativo para uma sociedade emancipada.

Ademais, nesse contexto surge um fator, a princípio, agravante, qual seja, a religião. Pois não é por acaso que esta tem sido em várias situações usada de modo a beneficiar a ordem dominante, como durante o regime facista italiano, por exemplo. Nessa ocasião, a proposta da reforma Gentile, deixava claro a necessidade de impedir o acesso das massas à cultura, reservando-lhes porém, o ensino religioso (MOCHCOVITCH, 1992).

Em virtude desse papel desempenhado pela superestrutura religiosa, faz-se necessário agora, analisarmos mais de perto a função da religião no contexto que acabamos de expor.

O papel do ensino religioso nos países de capitalismo periférico: um exemplo Brasileiro

Considerando a religião como superestrutura, tal como o fez Gramsci, segundo Mochcovitch (1992), sobre esta preponderam as determinações do sistema capitalista de produção, tal como na educação. A via pela qual a religião tem acesso à educação institucionalizada é o ensino religioso. Cabe, portanto, verificarmos as implicações decorrentes desse conjunto de fatores no cotidiano do homem inteiro.

Antes de procedermos, devemos destacar que este tipo de ensino é, por lei, garantido a todas as escolas públicas de nível fundamental do Brasil. Pois assim consta no artigo 33 da LDB nº 9.394/96: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis”. Essa tentativa de tornar a educação laica não é completamente positiva, pois o Estado assumiria o espaço deixado pela instituição religiosa. Ademais, no ano seguinte a aprovação da citada lei, o texto foi alterado, passando ser oneroso para o Estado. Tal mudança reflete, no Brasil, a disputa entre a Igreja Protestante e a Católica. Na primeira redação da Lei, a igreja protestante é beneficiada em virtude de sua disposição.

Na realidade, aparentes contradições entre religião e Estado revelam, se analisadas mais a fundo, uma proximidade entre estas superestruturas, já que a religião, enquanto aparelho ideológico, se equipara ao Estado como aparelho repressor (PORTELLI, 1984). O tênue espaço entre estas se dá pelo fato de que, para uma classe hegemônica se manter como tal, ela precisa da força repressiva e ideológica do Estado a seu favor. Em outras palavras, o Estado precisa da religião para exercer um papel ideológico junto às massas. Busquemos então as provas dessa função da religião dentro do ensino religioso.

Observemos agora um trecho do material que é referência para o ensino religioso no Brasil. Segundo este:

O ensino religioso não pode deixar de ser iluminado pela teologia, porque o objetivo que ele tem é educativo. É oferecer aos educandos possibilidade de se desenvolverem como pessoas integradas e participantes na construção de um mundo diferente [...] e um mundo assim só é possível enquanto a criação e a história estiverem voltadas para um sentido transcendente, atentas às aspirações humanas (CNBB/REGIONAL SUL III, 1996).

Formalmente a teologia (que se diz ciência) é base teórica para o ensino de religião, como tal deve ser analisada com o rigor científico. Pois como destaca Lukács, ao passo que a teologia se pretende como ciência, esta deve sim, estar sujeita as críticas da ciência (LUKÁCS, 1981).[6]

O trecho citado acima pretende que a história tenha uma finalidade ligada ao transcendente. Essa observação revela de antemão, o caráter idealista com o qual se firma dentro da sala de aula, o ensino religioso. Pois a história não deve ter um objetivo a alcançar pré-determinado, senão seria destino, tal como crê os católicos.

Por trás desse objetivo do ensino religioso, esconde-se a anulação da história feita pelos homens e, conseqüentemente a potencialidade do homem como sujeito nessa história. Isto é, tira do conjunto da humanidade a possibilidade de trasformar a história. Ademais, a Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), mesmo que implicitamente, procura negar a materialidade do ser quando afirma que “o ensino religioso, oferecendo o sentido transcendente da vida [...], coloca os fundamentos básicos para que as pessoas se sintam motivadas e convictas sobre a realidade de se viver (1996, p. 91). Entretanto, como expõe Lukács (1982), a atividade humana parte do cotidiano concreto e tem como objeto último a própria materialidade deste. Portanto, sabemos que existe uma relação próxima entre Estado, educação e religião e que, o ensino religioso tem um caráter idealista e reacionário.

Considerações Finais

Diante do exposto, concluímos, de modo sintético como cobra o caráter de uma comunicação como esta, que, não é real o que afirma os bispos ao dizerem que o ensino de religião promove o senso crítico (CNBB, 1996), haja vista que este se baseia na bíblia cristã, a qual se fundamenta na revelação e na fé, ou seja, em dogmas postos de cima para baixo. Dessa forma, mesmo que alguns grupos religiosos sejam aparentemente críticos com relação aos problemas sociais, ficam apenas na especulação, pois seus argumentos põem a perspectiva de solução em um ser místico, no além mundo, e não nas ações práticas dos homens em sociedade. Ademais, da forma que está posto, esta disciplina é contraditória dentro da escola, pois tem ecomo tese a pretensão de promover a ciência, o que se contradiz com as bases do ensino religioso antropomórfico e inspirado em Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, que se opõem ao desenvolvimento do saber científico.

Devido a tais características, esse ensino religioso atualmente mantido pela proposta de educação do Estado brasileiro, com finalidade de manter as atuais relações de domínio, se opõe à perspectiva de Gramsci que busca uma escola única e unitária, baseada na omnilateralidade bdefendida por Marx. Destarte, desinteressada, que possibilite ao educando, o desenvolvimento intelectual, bem como as habilidades práticas exigidas pela sociedade e espírituais de elevação do ser. Nessa perspectiva, a escola deveria fazer com que as pessoas que a freqüentam, tivessem acesso as ciências, as artes, a política e todo o patrimônio cultural da humanidade (MOCHCOVITCH, 1992). Mais uma vez fica evidente o abismo entre a escola pretendida pelos clássicos do marxismo e o atual modelo administrado pela elite capitalista, intelectualmente atrasada do Brasil. A malfadada burguesia brasileira tem como ferramenta para aumentar a distância de uma educação necessária para as massas, o ensino religioso, tal como ele se processa atualmente, via políticas públicas, nas nossas escolas.

Assim, recai sobre o ensino religioso a forte indicação de ser esta disciplina uma ferramenta de domínio ideológico que contribui para a formação do homem alienado, aquele preso ao seu cotidiano, e não para um ser emancipado, que se elevar sobre a cotidianidade através da ciência, da arte e da cultura universal. Dessa forma, é propício ao Estado incentivar tal modelo de ensino, haja vista que por este ser reacionário, anti-crítico e místico, favorece a sociabilidade burguesa e, de modo destacado, contempla o capitalismo atrasado praticado no Brasil imerso na crise profunda por que passa o capital mundial.

Por fim, ressaltamos que a evolução da religião, de modo geral, produziu todo um conjunto de conhecimento referente a esse mesmo processo evolutivo. De outra forma, não podemos negar a história da religião. Assim, entendemos que esse conjunto de conhecimento não deve ser negado a humanidade e, é justamente função da escola, até nos países de capitalismo periférico como o Brasil, oferecer a possibilidade de acesso a esse conhecimento. Contudo, tal conhecimento jamais deverá ser dogmático e comprometido com o status quo dos que estão no poder.

 

Referências Bibliográficas

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CNBB, Regional sul III. Texto Referencial para o Ensino Religioso Escolar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

COSTA, Frederico Jorge Ferreira. Marxismo, história e educação in Vozes da FACEDI: Reflexões, Experiências e Perspectivas em Educação. Fortaleza-CE: EDUECE, 2010.

LUKÁCS, Georg. Estetica I: la peculiaridad de lo estético. Bracelona: Crijalbo, 1982.

MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. 1ª edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. 3ª edição, São Paulo: Editora Ática, 1992.

PONCE, Aníbal. Educação e Luta de Classes. 16ª edição. São Paulo: Cortez, 1998.

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a Questão Religiosa. São Paulo: Ed. Paulinas, 1984.

SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo; A Imaginação; Questão de Método. Coleção Os pensadores. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

SOUZA, Paulo Nathanael Pereira e SILVA, Eurides Brito (org). Como entender e aplicar a nove LDB. São Paulo: Pioneira Educação, 1997.

TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2005.

VIEIRA, Sofia Leche; ALBUQUERQUE, Maria Gláucia Menezes (orgs). Política e Planejamento Educacional. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Martin Claret, 2007.


[1] Graduando em Pedagogia pela FECLESC-UECE; Bolsista CNPq; gpem2@yahoo.com.br

[3] Não se deve confundir, entretanto, o liberalismo de Adam Smith e David Ricardo – que defendiam a absoluta liberdade econômica para que o setor privado pudesse crescer sem intervenção do Estado – com o neoliberalismo. O último, que tem como principais representantes Friedrich von Heyek e Milton Friedman, estabeleceu-se no Brasil a partir de 1970. Neste, apesar de haver um discurso de neutralidade com relação à economia – principalmente –, são inúmeras as evidências do oposto. A título de exemplo, basta destacar aqui os programas de incentivo financeiro a instituições de ensino superior não-públicas, como o Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Destacamos ainda que entre estes dois momentos da economia política, alguns países europeus, bem como os Estados Unidos, passaram por uma fase de intervencionismo do Estado, conhecido como estado de bem estar social ou walfare state.

[4] O que separa um indivíduo de um trabalho específico é tanto a sua própria condição física mesma, por exemplo, como o fato do próprio tipo de atividade exigir desse indivíduo determinadas condições. Para “brocar” no sertão, ou em qualquer parte do mundo, é necessário basicamente que o indivíduo tenha mãos que funcionem e a ferramenta adequada e que consiga manuseá-la com força suficiente. Todavia, uma criança, ao menos em tese, não tem condições de executar tal atividade em virtude de seu baixo desenvolvimento da força física. Entretanto, este mesmo indivíduo pode perfeitamente realizar a tarefa de plantio do solo. Dessa maneira, a base produtiva primitiva, preponderantemente, permitiu certa divisão – inicialmente fundada na natureza – dos grupos humanos em classes, bem como a segmentação do trabalho. Contudo, paulatinamente, uma classe vai levar tal divisão ao extremo, chegando ao ponto em que, o sertanejo é impedido de conhecer Paris, apesar de ele dispor dos requisitos naturais necessários para tal, inclusive a capacidade de ganhar dinheiro. Nesse estágio, a classe dominante justifica a situação por fundamentos abstratos enquanto domina economicamente e ideologicamente a outra classe como meio de obter lucro e perpetuar sua situação. Ademais, essa divisão natural não justifica a divisão da produção, haja vista que a criança apesar de não poder realizar determinada tarefa, precisa suprir suas necessidades básicas, também naturais.

[5] Como se diz no cotidiano, na educação “há dois pesos e duas medidas”. Contudo, mesmo a educação da elite está longe da omnilateralidade e da proposta de escola única/unitária de Gramsci.

[6] Tradução de Ivo Tonet

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